Os debates em torno da inteligência artificial se intensificaram desde o lançamento do ChatGPT, uma IA do tipo generativa, ou seja, capaz de criar textos, imagens, áudios e vídeos. Embora as polêmicas remontem aos primórdios da computação, ainda nos anos 1940, como se vê no filme “O Jogo da Imitação”, que revela ao grande público uma máquina construída pelo britânico Alan Turing utilizada pelos aliados para decifrar mensagens alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, o tema ganhou relevância com as transformações digitais em curso neste século, sobretudo na área da saúde.
As discussões devem culminar em um marco regulatória da IA para a saúde. Diante do desafio, o SindHosp e a Fehoesp, em parceria com a CNSaúde, levaram o tema para a Hospitalar 2024. A arena Hospitalar Hub recebeu o “VI Brasil Saúde – Fórum Brasileiro de Gestão em Saúde”, que teve como tema macro “A Inteligência Artificial na Saúde”.
Tripé cultural
Os avanços ocorrem em velocidades diferentes considerando a tecnologia, a sociedade e as normas. Ou seja, o tema está escorado em um “tripé cultural” e depende de um equilíbrio entre tempos de cada ponto de apoio para se consolidar de maneira mais consistente. No campo da saúde, a IA é capaz de predizer um “no show” com extrema assertividade, mas há muito o que se discutir ainda, a começar pela dificuldade de se ter um prontuário padrão.
Francisco Balestrin, presidente da Fehoesp e do SindHosp, e Breno Monteiro, presidente da CNSaúde e FENAESS, abriram o evento, juntamente com Daiane Nogueira de Lira, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “O tema IA, em que pese aspectos técnico-científico, tem o arcabouço jurídico. Ferramenta tão poderosa que, se não tomar cuidados, nós, profissionais, teremos ameaça à integridade de dados”, destacou Balestrin. “O tema tem sido tratado há algum tempo pelo setor. Mas é preciso cuidado com o que a tecnologia causará à vida humana e aos nossos negócios”, acrescentou Breno Monteiro, da CNSaúde.
Saúde, IA e Justiça
Segundo o CNJ, existem quase 84 milhões de processos em tramitação no Brasil, distribuídos por 92 tribunais (mais de 80% na Justiça Estadual), passando nas mãos de 18 mil juízes e 275 mil servidores públicos. Para Daiane Nogueira de Lira, essa estrutura tem de estar pronta para a IA. “Quando tiver de analisar questões legais, jurídicas e éticas, o poder judiciário vai estar aberto para esse desafio”, assegurou Daiana Lira. “A CNJ trabalha para realizar a integração da IA na saúde, garantindo acesso, com segurança e dentro de limites éticos. Estamos falando de celeridade, acesso, eficiência e transparência com segurança, ética e responsabilidade”.
Ela destacou a iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), que lançou o NatJusGPT, a primeira ferramenta de inteligência artificial generativa aplicada no Judiciário para a saúde. Trata-se de uma ferramenta que proporciona, de forma bem mais prática, uma pesquisa direcionada em uma base de dados específica.
ChatGPT omini-modal
Em seguida, subiram ao palco Alexandre Ferreira da Rocha, da Microsoft Brasil, e Jean Gorinchteyn, diretor técnico-científico da Fehoesp, para complementar a abertura com conceitos, história e futuro sobre IA. O executivo da Microsoft destacou o ChatGPT-4o, omini-modal, incluindo vídeo e voz, com modelos neurais embutidos. “Para a saúde, a IA terá vasta aplicação, como indicar sinais de envelhecimento previamente, garantindo mais qualidade de vida para uma população cada vez mais longeva. Cerca de 60% dos dados que o setor da saúde produz não são aproveitados e a IA pode mudar isso”, destacou Alexandre da Rocha. “A IA será um copiloto para o médico e o paciente, uma segunda opinião, ajudando a evitar erros, que custam caro”.
Para Jean Gorinchteyn, a IA terá grande relevância como assistente de médicos, alunos e professores, sobretudo diante da crescente quantidade de profissionais despreparados no mercado. “Com a IA, será possível prestar atenção em algo que talvez tenha passado despercebido em uma primeira análise, ter uma visão melhor do paciente”, destacou o diretor técnico-científico da Fehoesp.
Revolução em curso
Moderado por João Guerra, vice-presidente do Conselho de Administração SindHosp, o painel “A Revolução da Inteligência Artificial na Saúde” do Fórum Brasileiro de Gestão de Saúde contou com a participação de personalidades de diferentes áreas da saúde.
Edgar Gil Rizzatti, presidente da Unidade de Negócios Médico, Técnico, de Hospitais e Novos Elos do Grupo Fleury, falou sobre o uso da IA na Medicina Diagnóstica. “Segurança, acurácia, rapidez, equidade, eficiência e paciente no centro… IA vai garantir excelência para todas e cada uma, será uma medicina mais preditiva e preventiva”, destacou. “No Fleury, estamos trabalhando com IA para evitar ‘recoletas’ e identificar maior risco de câncer de mama por exames de sangue”.
Leonardo A. Giusti, sócio e líder de C&Ops e IGH da KPMG no Brasil, tratou da IA na Assistência Operacional. Ele defendeu o uso da IA para auxiliar a melhoria da jornada, tornando-a mais eficaz e eficiente, reduzindo dispêndio de dinheiro. “Penso na IA como orquestradora de uma jornada, contribuindo para um ecossistema mais integrado. Acho que há uma resistência inicial, como aconteceu com a telemedicina, mas que deve diminuir com o tempo”, acredita Giusti.
Daniel Ferraz, chefe de Inteligência Artificial da Rede D’Or São Luiz – SulAmérica Seguros Saúde, falou sobre IA na Assistência Médica. Ele disse que a IA permitiu uma redução de faltas em exames e consultas, que era de 30%, com análise dos dados de uma década. “O sistema se mostrou capaz de identificar faltas com 72 horas de antecedência e até 93% de assertividade. Conseguimos preencher 75% dessas faltas, com um enorme impacto administrativo e financeiro”, destacou o executivo. “Mas existem desafios, como padronizar prontuários eletrônicos, são muitos e em diferentes versões”.
Os limites da IA
Ainda durante o Fórum Brasileiro de Gestão de Saúde Fórum, os participantes discutiram os limites da inteligência artificial, com moderação de Breno Monteiro, presidente da CNSaúde e FENAESS. Gustavo Cardoso Guimarães, coordenador-geral dos Departamentos Cirúrgicos Oncológicos e do programa de cirurgia robótica da Beneficência Portuguesa de São Paulo, abordou os aspectos técnicos. Para ele, a IA é boa em ver padrões, o que é interessante para analisar muitos dados ao mesmo tempo. “Mas essa é uma ‘inteligência fraca’. Há uma ‘superinteligência’ que vai muito além, só que não está acessível”, destacou.
Dora Kaufman, professora do Programa de Tecnologias Inteligentes e Design Digital (TIDD) da PUC de São Paulo, tratou dos aspectos éticos. “Os atuais modelos soluções de IA não podem ser indicados como soberanos. O médico deve ser a referência. Caso contrário, a chance de erro é grande, não só por viés, mas por assertividade do resultado. A FDA está construindo o que seria a regulamentação, com procedimentos para o uso de IA, que deve ser uma parceira do médico e dos gestores hospitalares. É tudo muito novo, e a generativa, ainda mais”, observou Dora Kaufman.
Rafael Vinhas, diretor-adjunto de Gestão da Agência Nacional de Saúde Suplementar, apresentou os aspectos regulatórios. “A saúde é o nosso bem mais importante, devemos ser cautelosos. Mas o rigor não pode comprometer o desenvolvimento das tecnologias, ou seja, temos de trabalhar para que a regulação não seja extrema a ponto de podar a tecnologia”.
O professor Giovanni Cerri, chairman do InRad e vice-presidente do Instituto Coalizão Saúde, disse que tudo o que é novo vira um pouco ameaçador. Também lembrou que, das ferramentas IA aprovadas pelo FDA, cerca de 70% são da área de radiologia. “A IA é um fator fundamental para o momento atual, garantindo sustentabilidade da saúde, eficiência e segurança do paciente. Mas os algoritmos precisam ser validados, o que leva tempo, assim como acontece com medicamentos. IA é uma ferramenta que vai ser utilizada para melhorar processos e garantir segurança maior para seus pacientes”.
Encerrando o Fórum Brasileiro de Gestão de Saúde, Marcos Ottoni, diretor Jurídico da CNSaúde, discutiu os Projetos de Lei que buscam regulamentar a IA, em painel moderado por Francisco Balestrin. “Em resumo, os poderes judiciário e legislativo têm muito trabalho, inclusive para evitar que as inseguranças da sociedade inviabilizem a tecnologia”, destacou Ottoni.