Divulgamos a Nota Técnica sobre a Medida Provisória 927/2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19).t
Confira a íntegra:
NOTA TÉCNICA SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 927/2020
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT), no exercício das suas
atribuições estatuídas no art. 127 da Constituição da República de 1988 e nos arts.5º, III, “e”, 6º, XX, 83, V, e 84, caput, da Lei Complementar nº 75/93, expede a presente Nota Técnica sobre a Medida Provisória nº 927/2020.
Objeto desta Nota Técnica: Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que “dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências”.
1) Introdução
A MP 927/2020 altera a legislação trabalhista durante o período da calamidade pública, em razão da pandemia do coronavírus, reconhecida até 31 de dezembro de 2020, pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. Compreende-se a necessidade de se propor medidas para enfrentar esse momento excepcional, preservando empregos, rendas e empresas. Sempre com o escopo de contribuir para o debate e para o aperfeiçoamento da norma e medidas propostas, o Ministério Público do Trabalho se junta aos esforços de todos entes e registra que identificou equívocos jurídicos em alguns de seus dispositivos, que podem vir a prejudicar o adequado enfrentamento da atual crise vivenciada, tanto no aspecto normativo, quanto no aspecto consequencial.
Inicialmente, cabe destacar que a Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, prestigia consulta tripartite entre representantes do governo, empregadores e trabalhadores (art. 2º, item 1 c/c art. 5º, item 1, “b”) em caso de edição de normas sobre assuntos relacionados com as atividades da OIT, hipótese da MP 927/2020. Assim, o diálogo social, ainda que de modo célere e desburocratizado, poderá se constituir em instrumento importante para se alcançar os objetivos da norma.
2) Dos limites jurídicos do acordo individual escrito (art. 2º)
O art. 2º da MP 927/2020 prevê que “durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que
terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição”.
Autoriza-se, assim, que o acordo escrito entre empregado e empregador se sobreponha às convenções e acordos coletivos e até mesmo à lei, ressalvados apenas os limites constitucionais.
O Ministério Público do Trabalho tem total sensibilidade com a situação gravíssima por que passa o Brasil – e boa parte do mundo – diante da pandemia de COVID-19. Contudo, entende que mesmo esse quadro excepcional não pode autorizar a inversão do ordenamento jurídico para que as negociações entre trabalhador e empregador estejam acima de normas coletivas e da própria lei.
No plano jurídico, é importante frisar que o art. 7º, caput, da Constituição Federal, ao elencar os direitos fundamentais de trabalhadores urbanos e rurais, admite a previsão de outros direitos por meio de leis, tratados e atos infralegais, desde que “visem à melhoria de sua condição social”. Como consequência, acordos coletivos ou individuais apenas podem prevalecer sobre as leis quando mais benéficos do que estas e não violem disposições de ordem pública, a exemplo das relativas à saúde e segurança no trabalho.
Observa-se que o patamar atribuído ao trabalho humano pela ordem constitucional é tão elevado, que ela erigiu o “valor social do trabalho” a fundamento da República Federativa do Brasil, a “valorização do trabalho humano” a uma das bases da Ordem Econômica (art. 170, caput) e o “primado do trabalho” a base da Ordem Social (art. 193). Além disso, consagrou os princípios da “justiça social” (arts.173 e 193) e da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II).
A Constituição também prevê os direitos fundamentais à “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” (art. 7º, VI) – não
admitindo acordos individuais para esse fim –, ao “reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho” (art. 7º, XXVI) e à sindicalização (art. 8º).
Lei ou medida provisória, por conseguinte, não podem autorizar supressão de convenções ou acordos coletivos mediante ajustes individuais entre patrões e empregados, sob pena de inconstitucionalidade.
3) Da segurança e saúde no trabalho (arts. 3º, VI, e 17)
Há equívoco na permissão genérica concedida pelo art. 3º, VI, da MP nº
927/2020, para suspensão, por iniciativa dos empregadores, “de exigências
administrativas em segurança e saúde no trabalho”.
As normas regulamentadoras da saúde, segurança, higiene e conforto no ambiente de trabalho são de ordem pública, ou seja, inafastáveis pela vontade das partes, e imprescindíveis para a prevenção de doenças e acidentes, bem como para a garantia de condições minimamente dignas de trabalho. Entre os riscos por elas evitados, destacam-se, justamente, os biológicos, a exemplo de exposições ocupacionais ao coronavírus.
Em período de pandemia, por conseguinte, a observância de regras de saúde deve ser fortalecida, uma vez que o seu afastamento indiscriminado terá como poderá ter como repercussão o aumento do número de óbitos e de adoecimentos de trabalhadores, sobretudo nos serviços de saúde, que podem receber pacientes acometidos pela COVID-19.
A referida previsão da medida provisória, se mantida, pode violar direitos fundamentais consagrados na Constituição da República, dentre os quais os direitos à vida, segurança, saúde, função social da propriedade, bem-estar social e redução dos riscos inerentes ao trabalho, estatuídos nos seus arts. 5º, caput, III e XXII, 6º, 7º, caput e XXII, 170, 193 e 196. Ofen